Quarentena, prioridades e as pendências do dia a dia

Sabe aquela torneira que já vem pingando há meses e você ia deixando para depois o momento de ver uma forma de consertar? E aquela dorzinha de estômago que começou tem uns seis meses, acompanhada de um leve refluxo noturno, que você jurou que resolveria ainda no primeiro semestre de 2020? Tem também aquela loja, que não fica longe de casa, onde você precisava ver algumas coisas essenciais para ajustar uma roupa, um móvel, algum problema elétrico, mas estava sempre sem tempo e nunca dava uma passadinha por lá.

Pois é, nós entramos em isolamento, quarentena, como chamam, embora ninguém saiba o tempo que precisaremos ficar nessa situação, para falar em período de ‘40 dias’. Entramos na quarentena e as pendências continuam aí. A torneira parece que começou a pingar mais – ou será que você não passava tempo suficiente em casa para perceber que ela já pingava assim? A dorzinha está mais incômoda e o refluxo começou a atrapalhar seu sono – ou será que o nervosismo diante da incerteza atual está provocando insônia e agravando o problema que já afetava a sua saúde? E essa dor de cabeça que surge de vez em quando, chegou agora ou já estava instalada e você vinha adiando descobrir a origem tomando analgésicos?

O isolamento nos leva a refletir muitos assuntos e, entre eles, as nossas prioridades. Por que eu tive tempo para ler aquele monte de notícias, ver tantas coisas nas redes sociais, assistir séries e não consegui agendar uma consulta? Por que não passei na loja de artigos hidráulicos e peguei o contato de alguém para arrumar a torneira – ou não tentei eu mesma aprender a arrumar? E essa dor de cabeça, já estava aí?

Ao som da torneira que pinga insistentemente eu me pergunto por que deixei essas prioridades de lado por meses e agora, diante da incerteza do tempo que esse isolamento durará, a falta de prazo me provoca essa urgência em resolver tudo que ficou pendente. Pouco mais de dez dias sem colocar o pé para além do batente da porta do apartamento e parece um absurdo deixar esses problemas instalados aí por todo esse tempo, uma dezena de dias. Como se os meses acumulados anteriormente não fossem tão impactantes assim.

Vi um post perguntando às pessoas qual será a primeira coisa que elas farão quando acabar a quarentena e me coloquei a pensar sobre isso também. O que vamos fazer? Abraçar os familiares e amigos? Com certeza. Comemorar? Sem sombra de dúvidas. Penso também em correr para a natureza, sentir o chão de terra e grama úmido sob os pés, o sol queimando o rosto e a água – seja ela de mar, rio, lago ou cachoeira – me envolvendo completamente, num abraço com o Universo para sentir que estou viva e que o mundo continua a existir além da janela.

Também penso em repensar minha prioridades, tentar não deixar pelo caminho tantas pendências que vão ficando para depois. 

Fiz uma pequena emenda com fita isolante na torneira e o pinga pinga melhorou, por enquanto. Os chás, que estavam guardados esquecidos no armário da cozinha porque nunca tinha tempo para o gostoso ritual de esperar olhando a infusão, a fumaça subindo, o aroma se formando, estão ajudando a aliviar o estômago.

Enquanto a camomila se funde com a água para que um pouco da natureza esteja em mim com seu poder curador e transformador, sigo me fazendo as perguntas dessa fase de isolamento: Será que a dor de cabeça já estava aí? Será que quando tudo isso acabar vamos voltar às vidas corridas, insanas, de respiração acelerada e alegrias virtuais, ou vamos nos transformar, nos observar mais, priorizar as prioridades e viver a cada novo dia como se, de repente, pudéssemos entrar em quarentena amanhã?

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