
Creio que poucas coisas são tão íntimas quanto vasculhar com o olhar a geladeira de uma pessoa. Assim que a porta se abre e a luz acende, você corre os olhos ao redor e logo descobre se ela se cuida, do que gosta, dos espaços vazios. Vasculha por dentro mesmo.
Foi assim que me senti olhando a porta aberta da geladeira enquanto assistia ao espetáculo virtual Amâncio, do amigo, dramaturgo e ator Ronaldo Fernandes. Em uma visita intimista, a cada cômodo ao qual Ronaldo nos abre a porta vamos vasculhando o que tem dentro – da sua casa, da sua vida, das suas emoções mais profundas.
“Também sou filha de mãe branca e pai preto”, dialogo com ele em silêncio, confessando-me cúmplice de sua história. Quando ele explica alguns vocábulos nordestinos, me pergunto, avoada, como menina que cresceu ouvindo “tome tento”:“Oxê, mas será que eles não entendem isso”?.
Sigo com ele seus passos, seus tombos, seus reveses. Dou-lhe a mão quando chega a São Paulo e espero com ele sua música, que não chega. Ronaldo brilha, Ronaldo dança, Ronaldo baila.
Ronaldo apanha de Amâncio, Ronaldo sofre como Amâncio, Ronaldo enterra Amâncio. Numa espécie de ressurreição coletiva, Ronaldo tira Amâncio das entranhas e nos entrega abrindo a porta da geladeira.
Quando Amâncio chega ao fim, ouço um grito em minha mente: “Vidas negras importam!” – e penso que precisamos extrapolar esse grito para além de defender que as vidas negras precisam ser mantidas. Vidas negras precisam ser contadas, vidas negras precisam ser registradas, vidas negras precisam ser conhecidas. Foi essa a mensagem com a qual Ronaldo me presenteou: Não basta não morrermos: merecemos viver!
Ronaldo realiza em Amâncio sua Redenção – e nós, espectadores que seguimos seus passos, nos redimimos com ele.
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