Os que ficamos em casa

Ela continua firme, quase como quando começou. Quase tão convicta, quanto estava no início, de que tudo pode dar certo. Quase tão confiante como quando acreditou que o período poderia ser bom para refletir, aprimorar-se e, quem sabe, com dedicação e sorte, sair dessa uma pessoa melhor.

Ela continua firme, quase com tanta certeza de que as pessoas levarão aprendizados importantes. Quase tão convencida de que o bem sempre vencerá o mal, como nos desenhos da infância.

Ela continua firme, embora titubeie quando olha pela janela e constata que o mundo lá fora parece não se importar com os milhares de mortos. Continua convicta, apesar dos rostos sem máscaras e das máscaras nos queixos. Segue confiante mesmo com as praias repletas nos finais de semana de sol – não que tenha constatado por si, mas confirma nas imagens postadas em redes sociais. 

Ela continua firme, apesar de se perguntar quem são as pessoas que lotam os shoppings recém-abertos, que fazem filas para entrar e comprar; serão as mesmas que lamentavam estar sem dinheiro porque tudo parou? 

Ela continua quase firme quando vê que o mundo começa a abrir as portas e ao seu redor as pessoas mal fecharam as suas. Sente vontade de voar. Sente-se idiota vendo que tantos parecem não se importar com nada, querem apenas o vago momento hedonista de viver plenamente o agora. Como se não houvesse amanhã, prega o lema. Será que a máxima continua a fazer sentido quando estamos tão próximos do precipício, quando vivemos um momento como nunca antes pareceu que realmente pode não haver amanhã?

Ela já não se sente tão firme quando vê que as portas, até então entreabertas, escancaram-se. Morra quem morrer, parecem dizer num escárnio mudo e sem condolências aos familiares em luto.

Ele não se sente firme quando abre a janela, quando lê o noticiário, quando tenta meditar e a paz interior foi substituída por uma angústia de quem quer viver essa vida que os que não pararam estão a viver: a vida da praia, do sol, das gostosas caminhadas, do encontro com os amigos. 

Ela se sente tentada a sair, por sair.

Ela não sabe como se sente quando pensa que no futuro, a refletir que as lembranças dessa fase talvez dividam as pessoas entre as que precisaram continuar nas ruas porque trabalhavam em serviços essenciais, as que ficaram nas ruas porque acreditaram que tinham esse direito independentemente do bem coletivo, e as que ficaram em casa, como ela, para deixar a rua aos que nela precisavam estar. 

Ela se sente reconfortada quando vê, na rede social, um lamento como o seu, vago, de quem ficou em casa, de quem busca uma resposta, uma mão estendida a lhe dizer: eu também estou aqui, eu também fiquei em casa não por mim nem apenas pelos meus, mas pelos seus, por todos, por nós, pela humanidade. “Eu sou a única pessoa que ainda está em isolamento?”, pergunta a voz perdida que ela ouve no post, em meio a brigas políticas, absurdos desconcertantes atuais, violência e caos. “Não, você não está sozinha!”, tem vontade de gritar. Estou com você, estamos aqui; nós, que ficamos em casa, que vivemos essa angústia de acreditar fazer a coisa certa mesmo pelos que se recusam a nos acompanhar, a tentar salvar toda vida que for possível.

Ela pensa no filho, nos pais, na família, nos amigos que perderam parentes para a doença, nos milhares de desconhecidos, incógnitos, que lamentam a dor de uma perda que poderia ser evitada. Seu coração dói, chora, mas no fundo sente a paz de saber que fez e faz o que é possível para não contribuir com essa disseminação. 

Ela continua firme.

Viviane Pereira

2 de julho de 2020

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